Entrevista: Marcia Sele "O designer tem que ser flexível em adaptar-se as novas coisas" - Design informa

 

Bem-vindo, tenho o prazer de partilhar com o público a entrevista feita com a Designer Márcia Sele.

Márcia Sele é uma designer gráfica formada em comunicação e Design gráfico na Universidade George Mason, nos Estados Unidos da América. Começou trabalhando para MediaLab, tendo posteriormente passado pela Dalima, onde trabalhou para grandes empresas como ENH, TV Record, Construa Build it e mais... Entretanto, actualmente, está na Ikigai.

Aboubakar Bin: seja bem-vinda! e é um prazer estrear o programa contigo.

Márcia Sele: obrigada.

AB: Bom, sendo uma mulher jovem em Moçambique, pode contar-nos como vieste a te tornar numa designer?

MS: Bom na verdade, sempre, ou desde pequena, gostei de desenhar e sempre foi algo que, enfim, não me via a fazer outra coisa só que quando fui crescendo fui vendo que desenhar não é algo muito sustentável pelo menos em Moçambique ainda não era na altura então eu tinha que procurar algo mais concreto. Na primeira era arquitectura que eu queria fazer só que depois vi que era algo muito complexo, havia muita matemática e bem mesmo não era boa em matemática e aí surgiu Marketing e Publicidade na altura na Politécnica havia um curso de Comunicação que tinha esse vertente então aí eu segui esse curso e foi aí onde calhou esse interesse do design que era algo novo ainda. A partir daí fui procurar quais são os programas que são usados na maioria Photoshop fui experimentado com esse e aquele. E também fui vendo aqueles muito mais simples como “Paint” no Windows por exemplo que eu ia experimentando, qualquer tipo de programa que cria qualquer tipo de edição e até mesmo “Windows Movie Maker” cheguei a usar também (risos). E foi assim que foi crescendo o meu amor pelo design mas isso era mais como um hobby.

Só que depois vi assim que na verdade é possível a pessoa viver disso então foi aí onde eu despertei o meu interesse de estudar mesmo sobre isso, ter uma formação. Então quando fui para os EUA, continuei o meu curso de comunicação que eu tinha iniciado na Politécnica e a partir daí la também tive alguma formação de design. Então fiz além do próprio curso de Comunicação eu acabei terminando lá, tive também uma formação técnica de design e foi assim mesmo que entrei nessa área que ainda estou nisso até hoje. Bom em relação em ser mulher ou não isso por acaso nunca passou-me pela cabeça só agora é que estou a ver que realmente ainda somos um número bem reduzido que está com tendência em aumentar e espero que continue assim também.

AB: Acredito que essa nossa conversa poderá ser uma luz para jovens que queiram ser designers, ultimamente tenho conversado com várias moças designers, por acaso, são muito empenhadas. Jessica Walsh, fala sobre esse facto de terem poucas mulheres reconhecidas como tal no campo de design.

Em Moçambique temos duas instituições públicas superiores, ISArC e UP, onde leccionam design, e vários alunos querem uma oportunidade para estudar no exterior, como conseguiu estudar numa universidade dos EUA e qual foi a experiência de estudar num país com tecnologias avançadas em comparação com Moçambique e como iniciaste a carreira profissional como designer?

MS: Eu parei nos EUA porque tive uma oportunidade de um familiar que foi transferido para lá. Então eu tratei da minha equivalência, das minhas notas, porque já tinha o bacharelato da Politécnica para poder ser transferida lá para os EUA. Foi assim que cheguei lá na George Mason University. Foi lá onde fiz o curso de Comunicação. Na verdade lá eu aprendi muito mais coisas podemos dizer (risos) porque na altura que era 2007 ainda era algo muito fresco na área de comunicação, marketing, publicidade e relações públicas que era essa área que a Politécnica decidiu investir. E então o que eu praticamente aprendi na Politécnica era só a parte teórica até concluir o bacharelato.

Quando cheguei lá fiz em um ano tudo que aprendi na Politécnica e além disso fui fazer aulas práticas que tem a ver com produção de media, mas era mais edição de vídeos, e não era concretamente design. Tive algumas noções de design [...]. O design só surgiu mesmo quando estava a fazer o curso técnico a parte que ia um pouco em paralelo ao que eu estava a estudar na universidade. Fiquei lá durante 3 anos. Foi uma experiência muito enriquecedora. Aprendi muito porque lá praticamente eles são um dos maiores em produção de media e em design eles tem sim uma potência. Depois de concluir os 3 anos regressei para Moçambique e bem mesmo (risos) eu não onde iria começar, o quê que eu iria fazer com o curso. Mas a primeira coisa que fiz foi criar o meu currículo e o meu portfólio com o pouco que tinha feito com o curso técnico porque tinha feito alguns projectos [...]. Depois disso comecei a compilar o portfólio. Então mandei para as agências que eu conhecia que eram a Golo e a DDB.  Essas foram as duas primeiras que mandei. Por acaso não tive resposta nenhuma nessa altura. Só que me lembro ter visto num anúncio, não sei se é no website mas lembro que foi online, um anúncio de uma agência pequena nova que tinha uns 3 anos que era a MediaLab. Era do Cláudio Lobo, (da Chibaia). Então eu disse deixa eu arriscar. Praticamente eu não sabia muito sobre o assunto. Não sabia o que me esperava em termos práticos. Então fui lá pôr o meu currículo e o meu portfólio. Então eles ligaram me a dizer que “ficaram interessados em relação ao teu curso então que tal fazer uma experiência contigo e vermos no que dá.” E fui a saber que ele (Cláudio Lobo) estudou também na George Mason e foi essa coincidência que acho que fez com que me convidasse para trabalhar com ele. E soube que teve um histórico na STV, que fez muitos trabalhos lá. E foi com ele que o meu amor pelo design cresceu muito rapidamente e além disso fui aprender como as coisas funcionam aqui em Moçambique porque nessa parte era muito crua. Não tinha ideia nenhuma. Eu não imaginava que o design estava com um mercado assim com uma base sólida. E foi aí que comecei a minha carreira profissional, isso foi em 2010.

AB: Sem papas na língua, dá para viver de design e ser rico em Moçambique?

MS: (Risos) Viver de design é possível sim, mas ser rico, ainda não estamos nessa realidade. E bem mesmo se a pessoa quer ser designer, sinto que essa não é a maior ambição que a pessoa tem que ter mas sim de enriquecer os “skills” que tem, de ter mais conhecimento em relação ao design e também ir atrás das tendências do design. Acho que isso é muito mais enriquecedor do que estar a pensar no dinheiro em que vai receber na minha opinião. Quanto mais os teus “skills” vão aumentando, vão melhorando, vão seguindo as tendências, acho que aí o dinheiro irá compensar  também, e caminhar junto.

AB: (Risos), então tenho que mudar minha forma de olhar para o design. Bom, no início da entrevista disseste que abandonaste a ideia de seguir tua carreira profissional como artista por não ser sustentável. Em relação a design qual foi a reação da tua família ao escolher fazer esse curso.

MS: Porquê que eu mudei de desenho para arquitectura para depois passar para design? Foi mesmo [...] pela influência da família. Desenho, eu já havia dito que era uma área que não tinha muita saída (para mim) e também estamos a falar de 1900 e tal e era uma altura que ainda o sustento do desenho e o seu reconhecimento eram para alguns artistas. Não eram tantos destacados. E tinha que ser muito boa em conquistar o espaço. Então foi uma das partes que eu vi que ainda era muito nova e crua também em relação ao assunto. Então preferi deixar o desenho como “hobby”. E foi aí que fui ter com os meus pais e eu disse que gosto de desenhar mas não estou a ver uma área então eles podiam me dar uma luz. Então fomos pensando em conjunto e vimos talvez arquitectura. Podia ser algo, como tem a ver com desenho. Então fui investigando sobre isso e vi os anos que a pessoa tem que fazer de universidade para poder adquirir a licença para poder ser arquitecta e a responsabilidade disso, os cálculos. Foram essas coisas que me fizeram recuar um pouco mais. Foi depois que vi que acho que arquitectura também não dá. Então já estava a ficar um pouco aflita porque queria fazer algo que tem a ver com a parte criativa. Mas ainda não existia algo assim. Foi aí que ouvi falar do programa de Comunicação da Politécnica que achei interessante. Tem um pouco a ver com jornalismo, televisão, enfim, publicidade, marketing, que é algo que estão a começar a estudar aqui já em Moçambique, isso em 2004 se não me engano. Eu pensei talvez isso poderia ser algo interessante porque isso requer que tenha um pouco de criatividade e aí me lembrei da Golo que é uma das agências mais destacadas. Pensei que podia fazer isso. (Os meus pais) disseram “if it males you happy” como os americanos diriam. Meus pais sempre me apoiaram como viam que era algo que andava atrás, procurava, investigava. Então foi essa parte que incentivou a eles em eu ir atrás e viam que tinha algum mercado em algum sítio. E eu queria mesmo conquistar este espaço de fazer publicidade na primeira que me levou a comunicação e para o design para chegar onde estou agora.

AB: Como descreveria o cenário actual de design em Moçambique, tendo em conta o panorama antigo e o actual visto que fizeste parte da transição do analog para o digital?

MS: O que eu vejo agora é que a coisa boa é que o design está a crescer. Isso já em Moçambique. Isso é muito bom. Agora o que está a acontecer não estamos a conseguir prestar muita atenção em como ele está a crescer. Primeiro sim estamos a ter muitos profissionais que estão a desenvolver-se nessa área, que estão a aprende as diferentes formas de fazer design e também de trabalhar em design. Agora o que está a acontecer também é a educação que agora temos 2 escolas que ensinam como além de escolas de formação técnica, por acaso há algumas que já estão a surgir. Só o que falta neste momento é termos mais prática, mas quando digo prática, é aquela que é técnica e muito mais profissional e também uma senso de orientação em relação ao design. Porque o que eu estava a ver é que como o design está a crescer cada vez mais então muitos estão a despertar nisso só que não está a haver aquela delicadeza profissional de aprender sobre isso então por vezes não levam a sério o design. Acham que é uma forma mais fácil de ter dinheiro ou uma forma mais fácil de trabalhar enquanto na verdade não é bem assim. Requer um estudo, requer “skills”, requer o trabalho, requer tempo, conhecimento, então essa é a educação que é necessária ensinar-se as pessoas. Então com isso sinto que falta a vertente de debater-se mais sobre os assunto mas de uma forma mais aberto. Por acaso já estavam a surgir alguns fóruns, algumas conferências, uma delas é o “Dezaine” da Design Talk. Já estão a criar vários tipos de eventos para designers só que enfim como o COVID-19 teve que se interromper isso infelizmente. Mas seria bom se houvesse mais oportunidades dessas em haver mais entrevistas, acumular-se mais o conhecimento sobre o design aqui em Moçambique, como também estatísticas. Quanto mais informação mais técnica soubermos, e mais profissionalismo no design e como esta está a se desenvolver, acho que isso seria muito bom afim de educar as pessoas que vão futuramente se interessar no design em Moçambique. E também ter algo mais organizado nesta área.

AB: Como é possível conciliar o conhecimento dado na escola no mercado visto que a dinâmica do mercado é diferente com a das escolas?

MS: Há aquelas teorias assim básicas por exemplo teorias de cores, fontes, de alinhamento. Isso são aquelas bases que qualquer agência, qualquer estúdio criativo iria aceitar usar isso na prática. [...] Tem aquelas noções de marketing que não tem como mudar, (mas são adaptáveis). Mas tem os softwares que vão se dinamizar, mudando  com o tempo. Por exemplo há uns 10 ou 15 anos não podia se falar de social media que era algo que não tinha antes e que agora está a usar-se. E os designer criam conteúdos para social media. Então há essa componente que na prática o designer tem que ter essa habilidade de adaptar-se. E isso tem que ser algo que as escolas deveriam ensinar. O designer é uma pessoa que adapta-se, que sobrevive no mercado porque se ele não consegue adaptar-se às tendências, não tem como, e ele poder investigar e trabalhar porque não vai ser sempre a mesma coisa. Por mais que tenha agendamento, um plano de por exemplo campanhas [...] que tem que fazer por mês, e os tipos de “layouts” que tem que fazer, pode ser que neste momento esteja a fazer com um tipo de software por exemplo Photoshop e depois daqui a uns 5 meses esse Photoshop não será o mesmo. Então o designer tem que ser flexível em adaptar-se as novas coisas. E por isso mesmo que por vezes as agências requerem essa pressão. Não tem como a pessoa achar que vai chegar lá e sentar e dizer que “vamos te ensinar como é que se faz X, Y e Z”. A realidade é essa. Na agência tem que ser muito flexível e mostrar de que tens a garra para poder criar as coisas de uma forma eficaz. Agora a pessoa é que tem que avaliar também como criativo e como designer se esse trabalho que te dão vai de acordo com os teus princípios porque por vezes podes ir lá mas depois sentes que há que não está bem, que não está a te fazer crescer ou que não vai de acordo com aquilo que estudaste então em vez de a pessoa forçar a situação, tenta investigar outras coisas ou então fala com o patronato ou vê as opções  que te favorecem, mas não deixe que isso abale o teu trabalho. É verdade que não é fácil por a pessoa pode dizer “sou muito nova/o”, [...] “vão me mandar embora”, mas se apresentar-se e impor que realmente estás interessado em trabalhar na empresa há como reverter isso. Isso é uma questão de educação. Tanto para a pessoa que cria como para o que dá o emprego. Essa educação tem que ser continua. Como é uma área que desenvolve com muita rapidez tendo em conta que temos a internet e a tecnologia que são duas coisas que não param, estão sempre a evoluir então tem que haver essa flexibilidade ao nível do mercado. 

AB: Estamos quase para o final, vi no seu portfolio que trabalhou para grandes empresas como ENH, Construa Build it e mais… Por acaso achei o projecto da Joli Guesthouse interessante, podia falar do processo criativo da marca?




MS: (Risos) A Joli Guesthouse foi um projecto interessante. Veio quando ainda estava na Dalima e começou pelo logotipo. Criamos o logotipo só que depois chegou a um ponto que como eu fiquei sem tempo então teve que se passar para uma outra agência para criar-se o branding todo da Joli, então ficou em standby do meu lado só que depois o projecto voltou para mim. Fomos dar continuidade à aquilo que nós tínhamos. Assim fomos desenvolver vários logotipos. Antes era só escrevendo a palavra Joli com uma fonte elegante. Só que depois vimos que precisava de algum símbolo para usar-se para o próprio design quando for para criar a identidade toda, criar um símbolo que podia incorporar-se  em vários aspectos e foi aí que criamos a palmeira. E assim mesmo foi surgindo o logotipo. E a partir daí, já pensamos em como usar o símbolo nos elementos. Primeiro era mesmo na parte do que vai usar se dentro do próprio Guesthouse tais como os sabonetes, cartões de visita, a placa que está em frente do Guesthouse, também teve um livro das pessoas que entravam que quisessem assinar que se fez, chaveiros, aliás as chaves também que tem os números com um detalhe das palmeiras. Praticamente o processo criativo foi na base de criar um ambiente de folhas, mais orgânico mas com elegância. Esse era o conceito primário. E então tudo ia a volta disso, com um tom de dourado e cinzento. Foi a partir daí que fizemos esse processo todo do branding e depois seguimos para a parte da promoção do próprio Guesthouse. Para isso tivemos que fazer vídeos para dar a conhecer que existe o Guesthouse na maioria nos painéis da Dalima. Criou-se a newsletter que dá informação aos clientes que cadastravam-se no Guesthouse com dados básicos de endereço, os quartos, as promoções que tinham e a partir daí os que gerem a Guesthouse cuidaram das redes sociais. Entregamos todos os ficheiros para eles já tratarem da gestão de tudo isso. Então de vez enquanto, quando há uma ou outra coisa, vinham consultar-me para saber o que fazer o não então praticamente ainda há aquela ligação como fui eu que comecei o trabalho então há sempre aquela consultoria e por vezes fazer alguns trabalhos. Realmente foi um trabalho muito bonito, muito bom. Penso que a parte do logotipo levou muito tempo porque até conseguirmos acertar na ideia que ia se criar, como não era só a designer eu mas sim haviam mais pessoas envolvidas então eram muitas ideias que tinham que se juntar em uma só e também como era o ponto de partida todos tinham que entrar em consenso e dizer sim, já está. Então a partir daí podia seguir com o resto. 



AB: (risos) para quem não conhece o processo e a história por detrás da criação do logotipo pode parecer algo que simplesmente foi feito com base na intuição apenas, onde buscou-se uma tipografia manuscrita e vectorizou-se a folha e txam… Que conselho darias aos que estão a iniciar nessa área?

MS: Como conselho para os que estão a iniciar ou os que estão interessados em fazer essa área de design eu digo que se preparem primeiro porque não é algo fácil, é que tenham muita paciência, noção de investigação também, que é uma área que quanto mais a pessoa investiga mais fica enriquecida nas habilidades. Quando a pessoa estiver a fazer o próprio trabalho, não sofrer muito (risos). Geralmente a pessoa pensa muito porque (risos) o processo criativo pode ser muito bom por vezes principalmente como joga com a inspiração então pode ser muito “fun” como também pode ser muito frustrantes mesmo tempo. Então não tem que sofrer muito. Se por acaso acontecer o chamado bloqueio criativo, dei o teu tempo. É verdade que sabemos que na prática nem sempre temos tempo para ter essa parte de respirar mas não deixe que isso te bloqueie completamente em poder fazer o trabalho. Com o tempo a pessoa vai adquirindo mais habilidades. Não é assim num instante que a pessoa sabe tudo. É mesmo com a experiência que ganha mais firmeza em fazer as coisas. Então tenha paciência. Acho que esse é o maior conselho que dou. Paciência em aprender, paciência em saber mais, paciência em desenvolver também “and go with the flow” e obrigada também Aboubakar pela oportunidade de fazer parte desta entrevista. Espero que tenha partilhado algo interessante (risos) para quem quiser seguir o para quem já está a seguir e queira saber mais sobre o assunto de como é que o design funciona, como é na área do mercado e minha própria experiência em si. E obrigada (voz leve).


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